A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
1. A história da origem de quase todos os povos antigos se confunde com a da sua religião: é por isso que seus primeiros livros foram obras religiosas; e como todas as religiões se ligam ao princípio das coisas — que é também o da humanidade — elas têm dado explicações sobre a formação e o arranjo do Universo de acordo com o grau de conhecimentos da época e de seus fundadores. Daí resultou que os primeiros livros sagrados foram ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, como foram por longo tempo o único código das leis civis.
2. Nos tempos primitivos, os meios de observação eram necessariamente muito imperfeitos, as primeiras teorias sobre o sistema do mundo haviam de ser repletas de erros grosseiros; mas, ainda que esses meios fossem tão completos quanto os de hoje, os homens não teriam sabido se servir deles; aliás, tais meios só podiam ser fruto do desenvolvimento da inteligência e do conhecimento sucessivo das leis da natureza. Na medida em que o homem avançou no conhecimento dessas leis, ele penetrou os mistérios da criação e retificou as ideias que foram formuladas sobre a origem das coisas.
3. O homem era impotente para resolver o problema da criação até o momento em que a chave para isso lhe foi dada pela ciência. Foi preciso que a astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar o olhar nele; que, pela força do cálculo ele pudesse determinar com rigorosa exatidão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a física lhe revelasse as leis da gravidade, do calor, da luz e da eletricidade; que a química lhe ensinasse as transformações da matéria, e a mineralogia os materiais que formam a superfície do globo; que a geologia lhe ensinasse a ler nas camadas terrestres a formação gradual desse mesmo globo. A botânica, a zoologia, a paleontologia, a antropologia deviam lhe iniciar na filiação e na sucessão dos seres organizados; com a arqueologia ele pôde acompanhar os traços da humanidade através dos períodos; numa palavra, todas as ciências se completam umas às outras, devendo trazer sua parcela indispensável para o conhecimento da história do mundo; na falta disso, o homem não tinha outro guia além de suas primeiras hipóteses.
Ademais, antes que o homem tivesse posse desses elementos de apreciação, todos os comentadores da Gênese — cuja razão esbarrava nas impossibilidades materiais — giravam num mesmo círculo sem poder sair dele; só o puderam quando a ciência abriu o caminho, abrindo brechas no velho edifício das crenças, e tudo então mudou de aspecto; uma vez que o fio condutor foi encontrado, as dificuldades foram prontamente aplanadas; em vez de uma Gênese imaginária, surgiu uma Gênese real e, de certo modo, experimental; o campo do Universo se alargou ao infinito; vimos a Terra e os astros se formarem gradualmente de acordo com leis eternas e imutáveis, que demonstram muito melhor a grandeza e a sabedoria de Deus, em vez de uma criação miraculosa tirada repentinamente do nada, como uma mutação à vista, por uma súbita ideia da Divindade após uma eternidade de inércia.
Como é impossível concebermos a Gênese sem os dados fornecidos pela ciência, podemos dizer com toda a verdade que: a ciência é chamada a constituir a verdadeira Gênese a partir das leis da natureza.
4. Ao ponto a que ela chegou no século dezenove, a ciência solucionou todas as dificuldades do problema da Gênese?
Não, certamente; mas é incontestável que ela destruiu sem retorno todos os erros principais e lançou os fundamentos mais essenciais sobre dados irrecusáveis; propriamente falando, os pontos ainda incertos não passam de questões de detalhes, cuja solução não pode prejudicar o conjunto, qualquer que ela venha a ser no futuro. Aliás, apesar de todos os recursos que ela tem tido à sua disposição, faltou-lhe até agora um elemento importante, sem o qual a obra jamais poderia estar completa.
5. De todas as Gêneses antigas, a que mais se aproxima dos dados científicos modernos — malgrado os erros que contém, e que hoje são demonstrados até com evidência — é incontestavelmente a de Moisés. Alguns desses erros são até mais aparentes do que reais e vêm ou da falsa interpretação de certas palavras — cujo significado original se perdeu ao passar de língua em língua pela tradução, ou cujo significado se modificou com os costumes dos povos — ou pela forma simbólica própria ao estilo oriental, a qual tomamos ao pé da letra em vez de se procurar o seu sentido.
6. A Bíblia evidentemente contém fatos que a razão desenvolvida pela ciência não poderia aceitar hoje, além de outros fatos que parecem estranhos e repugnantes, porque se apegam a costumes que já não são os nossos. Porém, ao lado disso, haveria parcialidade em não reconhecermos que ela guarda grandes e belas coisas. A alegoria ocupa ali um espaço considerável, e esconde sob o seu véu verdades sublimes que se evidenciam desde que as procuremos no íntimo do pensamento, daí então o absurdo desaparece.
Por que então o véu não se ergueu mais cedo? Por um lado, por falta de luzes que só a ciência e uma sã filosofia poderiam dar, e por outro lado, pelo princípio da imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito bastante cego para a letra, sob a qual a razão deveria se inclinar, e, por conseguinte, pelo temor de comprometer a sustentação das crenças erguidas sobre o sentido literal. Como as crenças partindo de um ponto primitivo, acreditava-se que se o primeiro anel da cadeia viesse a se romper, todas as malhas da rede acabariam por se desagregar; é por isso que se fecharam os olhos de qualquer maneira; mas fechar os olhos ao perigo não é evitá-lo. Quando um edifício cede, não seria mais prudente substituir imediatamente as pedras defeituosas por outras pedras boas, em vez de se esperar, por respeito à antiguidade do edifício, que o mal se torne irremediável e que se faça preciso reconstruí-lo de cima a baixo?
7. Levando suas investigações até as entranhas da Terra e às profundezas dos céus, a ciência demonstrou de maneira irrecusável os erros da Gênesis mosaica tomada ao pé da letra, e a impossibilidade material de as coisas terem se passado como são ali referidas textualmente; por isso mesmo, a ciência desferiu um duro golpe nas crenças convencionais. A fé ortodoxa se sobressaltou, pois acreditou estar vendo sua pedra fundamental ser removida; mas quem devia estar com a razão? A ciência — caminhando prudente e progressivamente pelos terrenos sólidos dos dados e da observação, sem nada afirmar antes de ter em mãos as provas — ou uma narrativa escrita numa época em que absolutamente faltavam os meios de observação? No final das contas, quem deve prevalecer: aquele que diz que 2 mais 2 são 5 e se nega a verificar, ou aquele que diz que 2 mais 2 são 4 e o prova?
8. Mas então, alguns dizem: se a Bíblia é uma revelação divina, então Deus se enganou? Se não é uma revelação divina, ela não tem mais autoridade, e a religião desmorona por falta de alicerce.
Das duas coisas, uma: ou a ciência está errada, ou tem razão; se tem razão, ela não pode fazer que uma opinião contrária seja verdadeira; não há revelação que possa se sobrepor à autoridade dos fatos.
Incontestavelmente, não é possível que Deus — que é todo verdade — induza os homens ao erro, nem ciente nem inscientemente, senão ele não seria Deus. Portanto, se os fatos contradizem as palavras que lhe são atribuídas, devemos concluir logicamente que ele não as pronunciou, ou que tais palavras foram tomadas em sentido contrário.
Se a religião sofre dano com qualquer parte dessas contradições, a culpa não é da ciência, que não pode fazer que aquilo que é deixe de ser; a culpa é dos homens, por haverem prematuramente estabelecido dogmas absolutos, dos quais fizeram uma questão de vida ou de morte, sobre hipóteses suscetíveis de serem desmentidas pela experiência.
Há coisas com cujo sacrifício temos de nos resignar, de boa ou má vontade, quando não consigamos evitá-las. Quando o mundo avança, sem poder ser detido pela vontade de alguns, o mais sensato é segui-lo e nos adaptarmos ao novo estado de coisas, em vez de nos agarrarmos ao passado que se desmorona, sob o risco de cairmos com ele.
9. Seria preciso, por respeito aos textos considerados como sagrados, impor silêncio à ciência? Isso seria uma coisa tão impossível quanto impedir que a Terra gire. Sejam quais forem as religiões, elas jamais ganharam coisa alguma por sustentar erros evidentes. A missão da ciência é descobrir as leis da natureza; ora, como essas leis são obra de Deus, elas não podem ser contrárias às religiões baseadas na verdade. Lançar anátema40 ao progresso, como atentar contra a religião, é também ir contra a mesma obra de Deus; é, além do mais, esforço inútil, pois nem todos os anátemas do mundo impediriam a ciência de avançar, e a verdade se faz hoje. Se a religião se recusa a caminhar com a ciência, a ciência avançará sozinha.
10. Somente as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência; essas descobertas só são fatais para aquelas que se deixam distanciar das ideias progressistas ao se imobilizar no absolutismo das suas crenças; elas geralmente fazem uma ideia tão mesquinha da Divindade que não compreendem que assimilar as leis da natureza reveladas pela ciência é glorificar a Deus em suas obras; mas, na sua cegueira, preferem render homenagem ao Espírito do mal. Uma religião que não estivesse em contradição em nenhum ponto com as leis da natureza nada teria que temer do progresso e seria invulnerável.
11. A Gênese contém duas partes: a história da formação do mundo material e a da formação da humanidade, considerada em seu duplo princípio corporal e espiritual. A ciência está limitada à pesquisa das leis que regem a matéria; no próprio homem, ela não estudou mais do que o envoltório carnal. A esse respeito, com uma precisão incontestável, chegou a se dar conta das principais partes do mecanismo do Universo e do organismo humano. Sobre esse ponto capital, a ciência pôde então completar a Gênesis de Moisés e nela retificar as partes defeituosas.
Mas a história do homem — considerado como ser espiritual — se vincula a uma ordem especial de ideias que não estão do domínio da ciência propriamente dita, e das quais, por este motivo, ela não tem feito objeto de suas investigações. A Filosofia, que particularmente tem mais esse gênero de estudo nas suas atribuições, só tem formulado sistemas contraditórios sobre o ponto em questão, desde a mais pura espiritualidade até a negação do princípio espiritual e até de Deus, sem outras bases senão as ideias pessoais de seus autores; pois então, ela tem deixado a questão indecisa, por falta de um controle suficiente.
12. No entanto, essa questão é a mais importante para o homem, porque é o problema do seu passado e do seu futuro; aquela do mundo material só o afeta indiretamente. O que lhe importa saber antes de tudo é de onde ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, e que destinação lhe está reservada.
Sobre todas essas questões a ciência é muda. A Filosofia não dá mais do que opiniões que concluem em sentido diametralmente oposto, mas que, pelo menos, permite debater — o que faz com que muitas pessoas se coloquem do seu lado, em vez do da religião que não debate.
13. Todas as religiões estão de acordo com o princípio da existência da alma, embora sem demonstrá-lo; mas não se concordam quanto à sua origem, nem quanto ao seu passado, nem sobre seu futuro e nem sobretudo — que é o essencial — sobre as condições de que depende a sua sorte futura. Em sua maioria, elas fazem do seu futuro um quadro imposto conforme a crença de seus adeptos, que não pode ser aceito senão pela fé cega, mas que não pode suportar um exame sério. Nos seus dogmas, o destino que elas fazem da alma — estando ligado às ideias que se fizeram do mundo material e do mecanismo do Universo nos tempos primitivos — é inconciliável com o estado dos conhecimentos atuais. Então, só tendo o que perder com o exame e o debate, as religiões acham mais simples anular um e outro.
14. Dessas divergências sobre o futuro do homem nasceram a dúvida e a incredulidade. Todavia, a incredulidade deixa um vazio penoso; o homem encara com ansiedade o desconhecido no qual cedo ou tarde fatalmente deve ingressar; a ideia do nada o congela; a consciência lhe diz que para além do presente há alguma coisa para ele: mas o quê? Sua razão desenvolvida já não lhe permite aceitar as histórias com as quais acalentaram sua infância, nem tomar a alegoria como a realidade. Qual o sentido dessa alegoria? A ciência lhe rasgou um canto do véu, mas não lhe revelou o que mais lhe importa saber. Ele interroga em vão, nada lhe responde de uma maneira peremptória e apropriada para acalmar suas apreensões; por toda parte ele se depara com a afirmação a se chocar contra a negação, sem provas mais concretas de um lado que do outro; daí a incerteza, e a incredulidade sobre as coisas da vida futura faz com que o homem, tomado de um frenesi, se atire às coisas da vida material.
Tal é o efeito inevitável das épocas de transição: o edifício do passado desmorona sem que o do futuro não esteja construído. O homem é como o adolescente que já não tem a crença ingênua dos seus primeiros anos, mas ainda não possui os conhecimentos da idade madura; tem apenas vagas aspirações, mas que ele não sabe definir.
15. Se a questão do homem espiritual permaneceu até os dias atuais em estado de teoria, é que faltavam os meios de observação direta, que só existiam para constatar o estado do mundo material, e o campo permaneceu aberto para as especulações do espírito humano. Enquanto o homem não conhecia as leis que regem a matéria e não podia aplicar o método experimental, ele andou a errar de sistema em sistema no tocante ao mecanismo do Universo e à formação da Terra. Assim tem sido tanto na ordem moral quanto na ordem física; para fixar as ideias, faltava o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Esse conhecimento estava reservado para a nossa época, bem como o conhecimento das leis da matéria tem sido a obra dos dois últimos séculos41.
16. Até o presente, o estudo do princípio espiritual — contido na metafísica — tem sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo, ele é todo experimental. Com o auxílio da faculdade medianímica — agora mais desenvolvida, e sobretudo popularizada e mais bem estudada — o homem se achou de posse de um novo instrumento de observação. A mediunidade tem sido para o mundo espiritual o que o telescópio foi para o mundo espacial e o microscópio para o dos seres infinitamente pequenos; ela permitiu explorar, estudar e — por assim dizer, de visu42 — suas relações com o mundo corporal; permitiu separar no homem vivo o ser inteligente do ser material, e lhes observar agir separadamente. Uma vez em interação com os habitantes desse mundo, tornou-se possível seguir a alma na sua marcha ascendente, em suas migrações, em suas transformações; pudemos, enfim, estudar o elemento espiritual. Eis aqui o que faltava aos anteriores comentadores da Gênesis para compreendê-la e retificar os seus erros.
17. Estando o mundo espiritual e o mundo material em incessante contato, eles são solidários entre si; ambos têm sua parte de ação na Gênese. Sem o conhecimento das leis que regem o primeiro, seria tão impossível constituir uma Gênese completa quanto seria para um escultor dar vida a uma estátua. Somente agora, se bem que nem a ciência material nem a ciência espiritual tenham dito sua última palavra, o homem possui os dois elementos próprios para lançar luz sobre esse imenso problema. Era preciso, com toda a necessidade, essas duas chaves para se chegar a uma solução, ainda que aproximada.
Notas de Rodapé
40 Anátema: sentença de reprovação e maldição lançada pela igreja contra os hereges (aqueles que atentam contra os princípios da religião); excomunhão, condenação — N. T.
41 Referentes aos séculos XVII e XVIII — N. T.
42 Expressão latina equivale a “de vista, por ter visto, por ter presenciado” — N. T.
