A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
1. A primeira ideia que os homens tiveram da Terra, do movimento dos astros e da constituição do Universo deve ter sido, a princípio, baseada unicamente na percepção dos sentidos. Na ignorância das mais elementares leis da física e das forças da natureza, só dispondo de sua vista limitada como meio de observação, eles não podiam julgar senão pelas aparências.
Vendo o Sol aparecer pela manhã de um lado do horizonte e desaparecer à tarde do lado oposto, concluiu-se naturalmente que ele girava em torno da Terra, enquanto esta permanecia imóvel. Se dissessem então aos homens que é o contrário o que ocorre, eles responderiam que tal coisa não seria possível, pois, diriam: nós vemos o Sol mudar de lugar e não sentimos a Terra se mexer.
2. A curta extensão das viagens — que naquela época raramente ultrapassavam os limites da tribo ou do vale — não permitia constatar a esfericidade da Terra. Além disso, como supor que a Terra fosse uma bola? Os homens só poderiam se manter sobre o ponto mais elevado e, supondo-a habitada em toda a superfície, como poderiam eles viver no hemisfério oposto, de cabeça para baixo e de pés para cima? A coisa parecia ainda menos possível com o movimento de rotação. Mesmo nos nossos dias, em que conhecemos a lei de gravidade, quando vemos pessoas relativamente esclarecidas ainda não perceberem esse fenômeno, não devemos nos surpreender que os homens das primeiras gerações sequer tenham suspeitado disso.
A Terra então era para eles uma superfície plana e circular qual uma mó de moinho, estendendo-se a perder de vista na direção horizontal; daí a expressão ainda em uso: ir ao fim do mundo. Seus limites, sua espessura, seu interior, sua face inferior, o que havia embaixo, tudo era desconhecido.43
3. O céu, aparecendo sob uma forma côncava, era tida, segundo a crença comum, como uma abóbada44 concreta, cujas bordas inferiores repousavam sobre a Terra e demarcavam os seus confins; vasto domo cujo ar enchia toda a capacidade. Sem nenhuma noção do espaço infinito, incapazes até mesmo de lhe conceberem, os homens imaginavam essa abóbada constituída de uma matéria sólida, donde vem a denominação firmamento que sobreviveu à crença e que significa firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego herma, hermatos, firme, sustentáculo, suporte, ponto de apoio).
4. As estrelas, cuja natureza eles não podiam suspeitar, eram simples pontos luminosos, mais ou menos grossos, fixadas na abóbada como lâmpadas suspensas, dispostas sobre uma única superfície e, consequentemente, todas elas à mesma distância da Terra, da mesma maneira como as representamos no interior de certas cúpulas pintadas em azul, para simbolizar o azulado dos céus.
Se bem que hoje as ideias sejam totalmente diferentes, o uso das expressões antigas se conservou; ainda se diz, por comparação: a abóbada estrelada, sob a calota do céu.
5. A formação das nuvens pela evaporação das águas da Terra era então igualmente desconhecida; a ninguém podia vir a ideia de que a chuva que cai do céu tivesse sua origem na Terra, de onde ninguém a via subir. Daí a crença na existência de águas superiores e de águas inferiores, de fontes celestes e de fontes terrestres, de reservatórios colocados nas altas regiões, suposição que concordava perfeitamente com a ideia de uma abóbada sólida, capaz de sustentá-los. As águas superiores, escapando-se pelas frestas da abóbada, caíam em chuva e, conforme fossem mais ou menos largas as frestas, a chuva era suave, torrencial e diluviana.
6. A ignorância completa do conjunto do Universo e das leis que o regem, da natureza, da constituição e da destinação dos astros — que, aliás, pareciam tão pequenos, em comparação com a Terra — fez necessariamente com que esta fosse considerada como a coisa principal, o objetivo único da criação e os astros como acessórios criados exclusivamente para a distração dos seus habitantes. Esse preconceito se perpetuou até os nossos dias, não obstante as descobertas da ciência, que, para o homem, mudaram o aspecto do mundo. Quanta gente ainda acredita que as estrelas são ornamentos do céu a entreter a vista dos habitantes da Terra!
7. Não tardou para que se percebesse do movimento aparente das estrelas, que se movem em massa do oriente para o ocidente, despontando ao anoitecer e se pondo pela manhã, conservando suas respectivas posições. Essa observação não teve durante longo tempo outra consequência que não fosse a de confirmar a ideia de uma abóbada sólida arrastando consigo as estrelas no seu movimento de rotação.
Essas ideias primárias, ingênuas, no curso de largos períodos seculares, constituíram o fundo das crenças religiosas e serviram de base a todas as cosmogonias45 antigas.
8. Mais tarde percebeu-se, pela direção do movimento das estrelas e pelo seu retorno periódico na mesma ordem, que a abóbada celeste não podia ser simplesmente uma metade de uma esfera posta sobre a Terra, mas sim uma esfera inteira, oca, ao centro da qual se achava a Terra, sempre plana, ou quando muito convexa, e habitada somente na superfície superior. Isso já era um progresso.
Mas, sobre o que estava apoiada a Terra? Seria inútil mencionar todas as suposições ridículas criadas pela imaginação — desde a dos indianos, que a diziam suportada por quatro elefantes brancos e pousados sobre as asas de um imenso abutre. Os mais sábios confessavam que nada sabiam a respeito.
9. Entretanto, uma opinião geralmente difundida nas teogonias46 pagãs situava nos lugares baixos, ou dito de outro modo, nas profundezas da Terra, ou debaixo desta, não se sabia bem, a morada dos condenados, chamada infernos, isto é, lugares inferiores, e nos lugares altos, além da região das estrelas, a morada dos bem-aventurados. A palavra inferno se conservou até hoje, se bem que tenha perdido a significação etimológica depois que a geologia47 retirou o lugar dos suplícios eternos das entranhas da Terra, e que a astronomia demonstrou que não há nem baixo e nem alto no espaço infinito.
10. Sob o céu límpido da Caldeia, da Índia e do Egito, berço das mais antigas civilizações, pôde-se observar o movimento dos astros com tanta exatidão o quanto a ausência de instrumentos especiais o permitia. Notou-se inicialmente que certas estrelas tinham um movimento próprio e independentemente da massa, o que não permitia supor que elas estivessem presas à abóbada; chamaram-lhes estrelas errantes ou planetas, para distingui-las das estrelas fixas. Calculou-se seus movimentos e os retornos periódicos.
No movimento diurno da esfera estrelada, observou-se a imobilidade da Estrela Polar, ao redor das qual as outras descreviam em vinte e quatro horas círculos oblíquos paralelos, uns maiores e outros menores conforme a sua distância em relação à estrela central; foi o primeiro passo para o conhecimento da obliquidade48 do eixo do mundo. Viagens mais longas permitiram observar a diferença dos aspectos do céu segundo as latitudes e as estações; a elevação da Estrela Polar, acima do horizonte variando com a latitude, demonstrou a forma redonda da Terra; foi assim que pouco a pouco se fez uma ideia mais exata do sistema do mundo.
Por volta do ano 600 antes de Cristo, Tales de Mileto (Ásia Menor) descobriu a esfericidade da Terra, a obliquidade da elíptica49 e a causa dos eclipses.
Um século depois, Pitágoras de Samos descobre o movimento diurno da Terra, sobre o próprio eixo, seu movimento anual em torno do Sol, e incorpora os planetas e os cometas ao sistema solar.
160 anos antes de Cristo, Hiparco de Alexandria (Egito) inventa o astrolábio50, calcula e prediz os eclipses, observa as manchas do Sol, determina o ano trópico e a duração das revoluções da Lua.
Por mais preciosas que fossem essas descobertas para o progresso da ciência, elas levaram perto de 2000 anos para se popularizar. As ideias novas, dispondo apenas de raros manuscritos para então se propagar, permaneciam como patrimônio de alguns filósofos, que as ensinavam a discípulos privilegiados; as massas — que ninguém cuidava de esclarecer — não tiravam nenhum proveito delas e continuavam a se nutrir das velhas crenças.
11. Por volta do ano 140 da era cristã, Ptolomeu — um dos homens mais ilustres da Escola de Alexandria —, combinando suas próprias ideias com as crenças comuns e com algumas das mais recentes descobertas astronômicas, compôs um sistema que se pode chamar de misto, que traz o seu nome, e que, por cerca de quinze séculos, foi o único adotado no mundo civilizado.
Segundo o sistema de Ptolomeu, a Terra é uma esfera posta no centro do Universo e se compõe de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Era a primeira região, dita elementar. A segunda região, dita etérea, compreendia onze céus, ou esferas concêntricas, girando em torno da Terra, a saber: o céu da Lua, os de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas fixas, do primeiro cristalino, esfera sólida transparente; do segundo cristalino e, finalmente, do primeiro móvel que dava movimento a todos os céus inferiores, e os obrigava a fazer uma revolução em vinte e quatro horas. Para além dos onze céus estava o Empíreo, habitação dos bem-aventurados, assim denominada do grego pyr ou pur, que significa fogo, porque se acreditava que essa região resplandecia de luz como o fogo.
A crença em muitos céus superpostos prevaleceu por longo tempo, mas variava quanto ao número; o sétimo era geralmente tido como o mais elevado, donde vem a expressão: Ser arrebatado ao sétimo céu. São Paulo disse que havia sito elevado ao terceiro céu.
Independentemente do movimento comum, segundo Ptolomeu, os astros tinham movimentos próprios, uns maiores outros menores, conforme sua distância em relação ao centro. As estrelas fixas faziam uma revolução em 25.816 anos. Esta última avaliação denota o conhecimento da precessão dos equinócios51, que de fato se realiza a cada 25.868 anos.
12. No começo do século dezesseis, Copérnico, célebre astrônomo nascido em Thorn (Prússia) no ano de 1472 e morto no de 1543, reconsiderou as ideias de Pitágoras; ele publicou um sistema que, confirmado todos os dias por novas observações, foi favoravelmente acolhido e não tardou a desbancar aquele de Ptolomeu. Segundo o sistema de Copérnico, o Sol está no centro e ao seu redor os astros descrevem órbitas circulares, sendo a Lua um satélite da Terra.
Um século mais tarde, em 1609, Galileu, natural de Florença, inventa o telescópio; em 1610, ele descobre os quatro satélites de Júpiter52 e calcula suas revoluções; reconhece que os planetas não têm luz própria como as estrelas, mas que são iluminados pelo Sol; que são esferas semelhantes à Terra; Galileu observa as suas fases e determina o tempo de suas rotações em torno de seu eixo, oferecendo assim, por provas materiais, sanção definitiva ao sistema de Copérnico.
Desde então ruiu a sustentação dos céus superpostos; os planetas foram reconhecidos como mundos semelhantes à Terra e como esta, sem dúvida, habitados; as estrelas sendo inúmeros sóis, prováveis centros de outros tantos sistemas planetários; e o próprio Sol foi reconhecido como uma estrela, centro de um turbilhão de planetas que a ele estão sujeitos.
As estrelas não estão mais confinadas numa zona da esfera celeste, mas estão irregularmente espalhadas pelo espaço sem limites; aquelas que pareciam se tocar encontrando-se a distâncias inimagináveis umas das outras; as menores aparentemente são as mais afastadas de nós e as maiores são as que estão mais perto — ainda assim estando a centenas de milhares de léguas.
Os grupos aos quais foi dado o nome de constelações não são mais do que conjuntos aparentes causados pela distância; suas figuras são efeitos de perspectiva, formando-se à vista daquele que se posta em um ponto fixo de luzes dispersas numa vasta planície, ou as árvores de uma floresta; porém esses agrupamentos não existem realmente; se nós pudéssemos nos transportar para a reunião de uma dessas constelações, a sua forma se desmancharia na medida em que nos aproximássemos dela e novos grupos se desenhariam à nossa vista.
Como esses agrupamentos só existem em aparência, o significado que uma crença vulgar e supersticiosa lhe atribui é ilusória, e sua influência não poderia existir senão na imaginação.
Para distinguir suas constelações, foi dado a elas nomes como estes: Leão, Touro, Gêmeos, Virgem, Libra, Capricórnio, Câncer, Áries, Hércules, Grande Ursa ou Carro de David, Pequena Ursa, Lira etc., e as representaram pelas figuras que esses nomes lembram — fantasiosas em sua maioria, mas que, em todos os casos, não têm qualquer relação com a forma aparente do grupo de estrelas. Seria assim em vão procurar tais formas no céu.
A crença na influência das constelações — sobretudo daquelas que compõem os doze signos do zodíaco — veio da ideia ligada aos nomes que elas trazem; se àquela que se chama leão fosse dado o nome de asno ou de ovelha, certamente lhe teriam atribuído outra influência.
13. A partir de Copérnico e Galileu, as velhas cosmogonias foram destruídas para sempre; a astronomia só podia avançar, e não recuar. A História conta as lutas que esses grandes pensadores tiveram de sustentar contra os preconceitos e sobretudo contra o espírito de seita, interessado em manter erros sobre os quais se haviam fundado crenças que lhes pareciam firmadas sobre uma base inabalável. Bastou a invenção de um instrumento de óptica para derrubar uma estrutura de muitos milhares de anos. Mas nada poderia prevalecer contra uma verdade reconhecida como tal. Graças à imprensa, o público iniciado nas novas ideias começou a não se deixar embalar com ilusões e tomou parte na luta; já não era contra indivíduos que eles tinham de combater, mas contra a opinião geral, que abraçou a causa da verdade.
Quanto o Universo é grande em relação às mesquinhas proporções que nossos pais lhe deram! Quanto é sublime a obra de Deus, desde quando a vemos realizar-se conforme às eternas leis da natureza! Mas também, quanto tempo, quantos esforços de gênios e quantos devotamentos se fizeram necessários para destravar os olhos e, afinal, arrancar deles a venda da ignorância!
14. Desde então estava aberto o caminho em que ilustres e numerosos sábios iriam entrar para completar a obra delineada. Na Alemanha, Kepler descobre as famosas leis que conservam o seu nome e por meio das quais se reconhece que os planetas descrevem suas órbitas não circulares, mas em elipses, onde o Sol ocupa um dos focos; Newton, na Inglaterra, descobre a lei da gravidade universal; Laplace, na França, cria a mecânica celeste; e finalmente a astronomia deixa de ser um sistema fundado sobre conjeturas ou de probabilidades e se torna uma ciência estabelecida sobre as mais rigorosas bases do cálculo e da geometria. Assim se acha assentada uma das pedras fundamentais da Gênese, cerca de três mil e trezentos anos depois de Moisés.
Notas de Rodapé
43 “A mitologia hindu ensinava que o Sol se despojava de sua luz ao entardecer e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega figurava o carro de Apolo puxado por quatro cavalos. Anaximandro de Mileto, ao que refere Plutarco, sustentava que o Sol era um carrinho repleto de fogo muito vivo, que se escapava por uma abertura circular. Epicuro, segundo uns, teria emitido a opinião de que o Sol se acendia pela manhã e se apagava à noite nas águas do Oceano; outros pensam que desse astro se fez uma pedra-pomes [rocha vulcânica] aquecida até a incandescência. Anaxágoras o tomava por um ferro em brasa, do tamanho do Peloponeso. Observação estranha! Os antigos eram tão invencivelmente inclinados a considerar como real a aparente magnitude desse astro que perseguiram a este filósofo imprudente por ter atribuído aquele tal volume à tocha do dia, fazendo-se necessária toda a autoridade de Péricles para salvá-lo de uma condenação à morte, e comutar essa pena em uma sentença de exílio.” (Flammarion, Estudos e leituras sobre a astronomia, pág. 6). Diante de tais ideias, emitidas no quinto século antes do Cristo, nos tempos mais florescentes da Grécia, não devem causar espanto aquelas que os homens das primeiras gerações faziam sobre o sistema do mundo.
44 Abóboda: espécie de cobertura, teto construído em formas curvadas. Na ideia primitiva, a abóboda celeste seria uma cobertura física semelhante a uma cúpula, domo, metade de uma esfera – N. T.
45 Cosmogonia: ramo da Astronomia que estuda a origem, formação, estrutura e evolução do Cosmos (Universo) – N. T.
46 Teogonia: narração do nascimento dos deuses (presente nas religiões politeístas, ou seja, aquelas que creem e adoram várias divindades) – N. T.
47 Geologia: ramo da ciência que estuda a origem, história, vida e estrutura da Terra – N. T.
48 Obliquidade: o que não é reto, que é torto, que tem curva – N. T.
49 Elíptica: referente ao plano de órbita da Terra no entorno do sol, na forma de uma elipse, oval – N. T.
50 Astrolábio: Instrumento em forma esférica ou de círculo graduado, com haste móvel, usado para observar e determinar a altura do Sol e das estrelas e medir a latitude e a longitude do lugar onde se encontra o observador – N. T.
51 Equinócios: momento em que o Sol, em seu movimento anual aparente, corta o equador celeste, fazendo com que o dia e a noite tenham igual duração, mas que, com o fenômeno da precessão, essa igualdade é desfeita. Ver mais sobre isso no cap. IX, item 6. – N. T.
52 Depois de Galileu, os astrônomos descobriram mais oito; são conhecidos atualmente, portanto, 12 satélites de Júpiter, 4 deles com movimento retrógrado. – N. T.
