- – Retribuir o mal com o bem
- – Os inimigos desencarnados
- – Se alguém lhes bater na face direita, apresentem-lhe também a outra
- – INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A vingança
- – O ódio
- – O duelo
O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO
Retribuir o mal com o bem
1. Vocês ouviram o que foi dito: Amem o seu próximo e odeiem os seus inimigos. Eu, porém, lhes digo: Amem seus inimigos; façam o bem aos que lhes odeiam e orem por aqueles que lhes perseguem e lhes caluniam, a fim de vocês sejam os filhos do seu Pai que está nos céus e que faz se levante o Sol para os bons e para os maus, e que faz chover sobre os justos e os injustos; pois, se vocês só amarem os que lhes amam, que recompensa terão com isso? Os publicanos também não fazem o mesmo? E se vocês não saudarem ninguém além dos seus irmãos, o que é vocês estarão fazendo com isso mais do que os outros? Os pagãos não fazem a mesma coisa? Eu lhes digo que se a sua justiça não for mais abundante do que a dos escribas e dos fariseus, vocês não entrarão no reino dos céus. (São Mateus, 5: 43 a 47 e 20)
2. Se vocês não amarem ninguém além daqueles que lhes amam, que mérito terão por isso, já que as pessoas de má vida também amam aqueles que as amam? E se vocês fizerem o bem somente aos que lhes fazem bem, que mérito terão com isso, já que as pessoas de má vida fazem a mesma coisa? E se vocês só emprestarem àqueles de quem esperam receber o mesmo favor, que mérito terão com isso, já que as pessoas de má vida emprestam umas às outras da maneira forma, para receber a mesma vantagem? Mas, para vocês, amem seus inimigos, façam o bem a todos e emprestai sem nada esperar; e dessa forma a recompensa de vocês será grandíssima, e vocês serão os filhos do Altíssimo, porque ele é bom para os ingratos e até mesmo para os ímpios. Portanto, sejam plenos de misericórdia, como seu Deus é pleno de misericórdia. (São Lucas, 6: 32 a 36)
3. Se o amor ao próximo representa o princípio da caridade, amar os inimigos é a sua sublime aplicação, pois essa virtude é uma das maiores vitórias conquistadas contra o egoísmo e o orgulho.
Contudo, geralmente nos confundimos quanto ao significado da palavra amar nesta circunstância. Jesus não quis dizer, com essas palavras, que devemos ter para com o inimigo a mesma ternura que temos por um irmão ou por um amigo, porque ternura pressupõe confiança; ora, não podemos ter confiança numa pessoa sabendo que ela nos quer mal, nem ter para com ela manifestações de amizade, porque sabemos que ela pode abusar dessa amizade. Entre pessoas que desconfiam umas das outras, não pode haver as mesmas relações de simpatia que existem entre aquelas que estão em comunhão de pensamentos. Enfim, não podemos sentir a mesma satisfação em estar com um inimigo igual à satisfação de estar com um amigo.
Esse sentimento resulta inclusive de uma lei física: a de atração e de repulsão dos fluidos. O pensamento malévolo dirige uma corrente fluídica cuja impressão é penosa; já o pensamento benevolente nos envolve num eflúvio agradável; daí a diferença das sensações que experimentamos desde a aproximação de um amigo ou de um inimigo. Amar os inimigos, portanto, não pode significar que não devamos fazer diferença alguma entre estes e os amigos; esse preceito só parece complicado — e até mesmo impossível de ser praticado — porque algumas pessoas acham erradamente que ele recomenda dar a todos eles o mesmo lugar no coração. Se a pobreza da linguagem humana nos obriga a usarmos da mesma palavra para expressarmos diversos graus de um sentimento, a racionalidade deve estabelecer a diferença de acordo com cada caso.
Amar os inimigos não significa, portanto, ter por eles uma afeição que não está na natureza, pois o contato de um inimigo faz bater o coração de um modo totalmente diferente do contato de um amigo; significa não ter contra eles nem ódio, nem rancor e nem desejo de vingança; significa perdoá-los sem hesitação e sem condicionamentos pelo mal que eles nos fazem; significa não colocar nenhum obstáculo à reconciliação; significa lhes desejar o bem, em vez de lhes desejar o mal; significa se alegrar, em vez de se afligir, quando lhes ocorre algo de bom; significa lhes estender uma mão de socorro, em caso de necessidade; significa se abster em palavras e em atos de tudo que os possa prejudicar; significa, finalmente, restituir-lhes todo o mal com o bem, sem intenção de os humilhar. Quem faz isso cumpre as condições do mandamento: Amem os inimigos.
4. Amar os inimigos é um contrassenso para o incrédulo; aquele para quem a vida atual significa tudo não vê no seu inimigo nada além de um ser nocivo perturbando seu repouso e do qual ele acha que só a morte pode livrá-lo; daí vem o desejo de vingança; ele não tem nenhum interesse em perdoar, senão para satisfazer o seu orgulho aos olhos do mundo. Em certos casos, perdoar parece-lhe inclusive uma fraqueza indigna de si; quando ele não se vingar, nem por isso deixa de conservar rancor e um secreto desejo de mal.
Para o crente, e sobretudo para o espírita, a maneira de ver é totalmente diferente, porque ele lança seu olhar sobre o passado e sobre o futuro, entre os quais a vida presente não passa de um ponto; ele sabe que, pela própria condição da Terra, nela ele deve esperar encontrar homens maus e perversos; que as maldades com as quais ele está em luta fazem parte das provas que ele deve suportar, e o ponto de vista elevado em que ele se encontra torna as dificuldades menos amargas — que elas venha dos homens ou das coisas. Se ele não se queixa das provações, também não deve se queixar daqueles que são os instrumentos das provações; se ele, em vez de murmurar, agradece a Deus por pô-lo à prova, também deve agradecer a mão que lhe oferece a ocasião de demonstrar a sua paciência e a sua resignação. Esse pensamento o dispõe naturalmente ao perdão; ele sente, além disso, que quanto mais for generoso, mais ele se engrandece aos seus próprios olhos e se coloca fora do alcance das flechas maléficas do seu inimigo.
O homem que ocupa uma posição elevada no mundo não se julga ofendido pelos insultos daquele que ele considera como seu inferior; assim se dá com aquele que no mundo moral se eleva acima da humanidade material, pois ele compreende que o ódio e o rancor o prejudicariam e o rebaixariam. Ora, para ser superior ao seu adversário, é preciso que ele tenha a alma maior, mais nobre e mais generosa.
Os inimigos desencarnados
5. O espírita tem ainda outros motivos para ser indulgente com os seus inimigos. Ele sabe, primeiramente, que a maldade não é um estado permanente dos homens; sabe que ela se deve a uma imperfeição momentânea e que, assim como a criança se corrige dos seus defeitos, o homem um dia mau reconhecerá seus erros e se tornará bom.
O espírita sabe também que a morte o livra apenas da presença material do seu inimigo, mas que este pode persegui-lo com o seu ódio, mesmo após ter deixado a Terra; sabe que, nessa condição, a vingança fracassa em seu objetivo, já que, ao contrário, ela tem por efeito produzir uma irritação maior que pode continuar de uma existência para outra. Cabia ao espiritismo provar — pela experiência e pela lei que rege as relações entre o mundo visível e o mundo invisível — que a expressão: extinguir o ódio com o sangue, é radicalmente falsa, e que o é que verdadeiro é que o sangue alimenta o ódio, mesmo no além-túmulo. Consequentemente, também cabia ao espiritismo dar uma razão de ser efetiva e uma utilidade prática ao perdão e àquele sublime ensinamento do Cristo: Amem seus inimigos. Não há coração tão perverso que não seja tocado pelo bom procedimento — mesmo sem se dar conta. Através do bom procedimento, pelo menos nós removemos todo pretexto para as represálias, porque, de um inimigo, podemos fazer um amigo, antes e depois de sua morte. Já com um mau procedimento, a pessoa irrita o seu inimigo, que então serve de instrumento à justiça de Deus para punir aquele que não perdoou.
6. Podemos, pois, ter inimigos entre os encarnados e entre os desencarnados; os inimigos do mundo invisível manifestam sua malevolência pelas obsessões e subjugações, contra as quais tanta gente estão lutando, e que representam uma variedade das provações da vida; essas provações, como as demais, contribuem para o progresso e devem ser aceitas com resignação, além de ser uma consequência da natureza inferior do globo terrestre; se não houvesse homens maus na Terra, não haveria maus Espíritos em torno dela. Portanto, se devemos ter indulgência e benevolência com os inimigos encarnados, igualmente devemos ter com aqueles que estão desencarnados.
Antigamente, sacrificava-se vítimas sangrentas para aplacar os deuses infernais — que não eram outros senão os maus Espíritos. Aos deuses infernais sucederam os demônios — que são a mesma coisa. O espiritismo vem provar que esses demônios não são outros senão as almas dos homens perversos, que ainda não depuraram os instintos materiais, que não se consegue aplacar a não ser pelo sacrifício do próprio ódio, isto é, pela caridade; vem provar que a caridade não tem por efeito somente impedi-los de fazer o mal, mas sim o de os reconduzir ao caminho do bem e de contribuir para a salvação deles. É assim que o provérbio Amem seus inimigos não se limita ao círculo estreito da Terra e da vida presente, mas também entra na grande lei da solidariedade e da fraternidade universais.
Se alguém lhes bater na face direita, apresentem-lhe também a outra
7. Vocês ouviram o que foi dito: olho por olho e dente por dente. Mas eu digo a vocês para não resistirem ao mal que alguém lhes queiram fazer; mas que, se alguém lhes bater na face direita, ofereçam-lhe também a outra face; e se alguém quiser pleitear contra vocês, para lhes tomar a túnica, entreguem-lhe também o manto; e que se alguém lhes forçar a caminhar mil passos com ele, caminhem mais dois mil. Deem àquele que lhes pedir, e não rejeitem quem lhes queira pedir empréstimo. (São Mateus, 5: 38 a 42)
8. Os preconceitos do mundo sobre o que convencionamos chamar ponto de honra produzem esse melindre sombrio, fruto do orgulho e da exaltação da personalidade, que leva o homem a pagar uma injúria com outra injúria, uma ofensa com outra ofensa, parecendo justiça para aquele cujo senso moral não se eleva acima das paixões terrenas; é por isso que a lei mosaica dizia: olho por olho, dente por dente — uma lei adequada ao tempo em que Moisés viveu.
Então Cristo veio e disse: Retribuam o mal com o bem. E disse mais: “Não resistam ao mal que alguém queira fazer a vocês; se alguém lhes bater numa face, ofereçam-lhe a outra face.” Para quem é orgulhoso, este ensinamento parece uma covardia, pois ele não compreende que haja mais coragem em suportar um insulto do que em se vingar; e isso sempre por causa daquilo que faz com que sua visão não veja além do presente. Mas, será que deveríamos tomar esse ensinamento ao pé da letra? Não, como também aquele outro que diz para arrancar o olho, se ele for um motivo de escândalo; levado às suas últimas consequências, isso seria o mesmo que condenar toda repressão — mesmo legítima — e deixar o campo livre para os ímpios, livrando-os de qualquer temor; se não se pusesse um freio às suas agressões, logo todos os homens bons seriam vítimas dos maus. O próprio instinto de conservação — que é uma lei da natureza — diz que não se pode benevolentemente entregar o pescoço a um assassino. Por essas palavras, portanto, Jesus não nos proibiu de nos defendermos, mas sim condenou a vingança. Ao dizer para oferecermos uma face quando alguém nos bater na outra, ele quer dizer, de outra forma, que não devemos pagar o mal com o mal; que o homem deve aceitar com humildade tudo aquilo que possa rebaixar seu orgulho; que é glorioso para ele em ser ferido do que em ferir, em suportar pacientemente uma injustiça do que em ele mesmo cometer uma injustiça; que mais vale ser enganado do que enganar, ser arruinado do que arruinar os outros. Esse ensinamento é ao mesmo tempo a condenação do duelo, que não passa de uma manifestação do orgulho. Só a fé na vida futura e na justiça de Deus — que jamais deixa o mal impune — pode nos dar a força para suportarmos pacientemente os ataques direcionados aos nossos interesses e ao nosso amor-próprio; é por isso que dizemos sem cessar: Apontem o olhar para o futuro; quanto mais vocês se elevarem pelo pensamento acima da vida material, menos vocês serão atingidos pelas coisas da Terra.
INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: A vingança
9. A vingança é um dos derradeiros resquícios abandonados pelos costumes bárbaros que tendem a desaparecer do meio dos homens. Ela é, igual ao duelo, um dos derradeiros vestígios desses comportamentos selvagens sob os quais a humanidade se debatia no começo da Era Cristã. É por isso que a vingança significa um indício certo do estado atrasado dos homens que a ela se entregam e dos Espíritos que ainda podem inspirá-la. Então, meus amigos, jamais esse sentimento deve fazer vibrar o coração de quem se diz e se proclama espírita. Vingar-se, vocês sabem bem, é tão contrário àquela prescrição do Cristo — “Perdoem seus inimigos” — que aquele que se recusa a perdoar não somente não é espírita como também não é cristão. A vingança é uma inspiração tanto mais funesta quanto a falsidade e a baixeza são suas assíduas companhias. Com efeito, aquele que se entrega a essa paixão fatal e cega quase nunca se vinga a céu aberto; quando ele é o mais forte, então ataca igual a uma besta fera sobre aquele a quem chama de inimigo, já que vê-lo faz inflamar a sua paixão, sua cólera e seu ódio. Porém, na maioria das vezes ele revela uma aparência hipócrita, dissimulando no mais profundo do seu coração os maus sentimentos que o animam; ele toma os caminhos desviados e. na surdina, segue o inimigo, que de nada desconfia, esperando o momento propício para o atacar sem perigo; ele se esconde do inimigo, espreitando-o constantemente; prepara-lhe ciladas odiosas e na ocasião apropriada derrama seu veneno no copo do inimigo. Quando sua ira não chega a esse extremo, ele então o ataca na sua honra e nas afeições; não recua diante da calúnia e suas insinuações pérfidas — habilmente espalhadas a todos os ventos — vão engrossando pelo caminho. Assim, quando aquele que é perseguido se apresenta nos lugares por onde o sopro envenenado passou, ele se espanta ao encontrar semblantes frios, onde antes encontrava semblantes amigos e benevolentes; ele fica estupefato quando as mãos que antes procuravam a sua agora se recusam a apertá-la; enfim, ele se sente aniquilado quando seus amigos mais queridos e próximos se afastam e o evitam. Ah, o covarde que assim se vinga é cem vezes mais culpado do que aquele que vai direto ao seu inimigo e o insulta abertamente.
Portanto, já chega desses costumes selvagens! Já chega desses hábitos de outros tempos! Todo espírita que ainda hoje pretendesse ter o direito de se vingar seria indigno de figurar por mais tempo na falange que adotou como emblema este fundamento: Fora da caridade não há salvação! Mas não, eu não poderia me permitir tal ideia de que um membro da grande família espírita pudesse no futuro de ceder ao impulso da vingança, ao invés de perdoar.
JULES OLIVIER (Paris, 1862)
O ódio
10. Amem-se uns aos outros e vocês serão felizes. Assumam a tarefa de amar principalmente aqueles que lhes inspiram indiferença, ódio ou desprezo. O Cristo — que é quem vocês devem adotar como modelo — lhes deu o exemplo desse devotamento; missionário do amor, ele amou até dar o próprio sangue e a própria vida. O sacrifício que obriga vocês a amar os que lhes ultrajam e lhes perseguem é penoso, mas é precisamente esse sacrifício que lhes torna superiores a eles. Se os odiassem como eles odeiam vocês, então não valeriam mais do que eles; esta é a hóstia sem mácula ofertada a Deus no altar dos seus corações, hóstia de agradável aroma e cujo perfume sobe até ele. Embora a lei de amor queira que amemos indistintamente a todos os irmãos, ela não resguarda o coração contra os maus procedimentos; esta é, ao contrário, a prova mais dolorosa, eu sei bem, porque durante a minha última existência terrena eu experimentei essa tortura; mas Deus lá está, e pune nesta vida e na outra todos os que falseiam a lei de amor. Não se esqueçam, meus queridos filhos, de que o amor nos aproxima de Deus, e que o ódio nos distancia dele.
FÉNELON. (Bordeaux, 1861)
O duelo
11. Só é verdadeiramente grande aquele que, considerando a vida como uma viagem que deve conduzi-lo a um objetivo, faz pouco caso das asperezas do trajeto; ele não se deixa desviar nem por um instante do caminho reto. Com os olhos constantemente fixados na direção desse objetivo, ele pouco se importa que os tocos e os espinhos do percurso ameacem arranhá-lo; eles o roçam sem ferir nem impedir sua caminhada. Expor seus dias para se vingar de uma injúria é recuar diante das provações da vida; isso é sempre um crime aos olhos de Deus, e se vocês não fossem iludidos pelos seus preconceitos, tal como são, isso seria uma tolice ridícula e suprema aos olhos dos homens.
Há crime no homicídio através do duelo e a própria legislação de vocês reconhece isso; ninguém tem o direito — em nenhum caso — de atentar contra a vida de seu semelhante; é um crime aos olhos de Deus, que lhes traçou a sua linha de conduta. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, vocês são juízes na sua própria causa. Lembrem-se de que serão perdoados conforme vocês mesmos também tenham perdoado; através do perdão vocês se aproximam da Divindade, pois a clemência é irmã da força. Enquanto uma gota de sangue humano correr na Terra pela mão dos homens, o verdadeiro reino de Deus ainda não terá chegado — reino de pacificação e de amor, que há de banir para sempre deste globo a animosidade, a discórdia e a guerra. Então, a palavra duelo não existirá mais na linguagem de vocês, a não ser como uma longínqua e vaga lembrança de um passado que se foi. Os homens não conhecerão entre eles outro antagonismo além da nobre competição do bem.
ADOLFO, bispo de Argel (Marmande, 1861)
12. Sem dúvidas, o duelo indubitavelmente pode ser uma prova de coragem física e de desapego pela vida, mas também é incontestavelmente a prova de covardia moral, assim como o suicídio. O suicida não tem a coragem de enfrentar as vicissitudes da vida, enquanto o duelista não tem a de suportar as ofensas. Cristo não lhes disse que há mais honra e coragem em apresentar a face esquerda àquele que bateu na direita do que em vingar uma injúria? Cristo não disse a Pedro, no Jardim das Oliveiras: “Ponha a tua espada na bainha, pois aquele que matar com a espada perecerá pela espada”? Por essas palavras, Jesus não condenou para sempre o duelo? De fato, meus filhos, que coragem é essa, então brotada de um temperamento violento, sanguíneo e colérico, rugindo já na primeira ofensa? Portanto, onde está a grandeza de alma daquele que, na menor injúria, quer lavá-la com sangue? Pois que ele trema! Pois, no fundo da sua consciência, uma voz sempre lhe gritará: Caim! Caim! O que você fez com o teu irmão? Eu precisei de sangue para salvar a minha honra — responderá ele a essa voz; mas ela lhe retrucará: Você quis salvar tua honra diante dos homens, por alguns instantes que te restavam de vida na Terra, e não pensou em salvá-la perante Deus! Pobre louco! Mas então, quanto sangue Cristo exigiria de ti por todos os ultrajes que ele recebeu! Não só você o feriu com espinhos e lança, não só o pregou num madeiro infamante, como também, em meio à sua agonia, ele pôde ouvir as zombarias que lhe eram feitas. Que compensação a tantos ultrajes ele te pediu? O último brado do cordeiro foi uma prece em favor dos seus algozes. Oh! Assim como ele, perdoem e orem pelos que lhes ofendem.
Amigos, lembrem-se deste preceito: “Amem-se uns aos outros”, e então, a um golpe pelo ódio vocês responderão com um sorriso, e ao ultraje vocês responderão com o perdão. O mundo indubitavelmente se levantará furioso e lhes tratará como covardes; levantem a cabeça bem alto e mostrem então que também sua fronte não temeria se encher de espinhos a exemplo do Cristo, mas que sua mão não quer ser cúmplice de um assassínio dito autorizado, por um falso ar de honra, que não passa de orgulho e de amor-próprio. Quando Deus lhes criou, teria ele concedido a vocês o direito de vida e de morte, uns sobre os outros? Não; ele não deu direito a não ser à natureza, só a ela, para se reformar e se reconstruir; quanto a vocês, não há sequer permissão de dispor de vocês mesmos. Tal como o suicida, o duelista ficará manchado de sangue quando estiver diante de Deus, e a um e a outro o Soberano Juiz prepara rudes e longos castigos. Se ele ameaçou com sua justiça aquele que disser raca ao seu irmão, quanto mais severa não será a pena para aquele que aparecesse diante dele com as mãos sujas do sangue de seu irmão!
SANTO AGOSTINHO (Paris, 1862)
13. O duelo — como aquilo que outrora se chamava o julgamento de Deus — é uma dessas iniciativas bárbaras que ainda regem a sociedade. No entanto, o que vocês diriam se vissem dois adversários mergulhados em água fervente ou submetidos ao contato de um ferro em brasa para resolver a contenda entre eles, e dar razão àquele que melhor sofresse a prova? Vocês tratariam esses costumes como uma insensatez. Pois o duelo é pior do que tudo isso.
Para o duelista experiente, é um assassínio cometido a sangue-frio, com toda premeditação desejada, pois ele está confiante no golpe que desferirá. Para o adversário quase certo de sucumbir, por causa da sua fraqueza e inabilidade, o duelo é um suicídio cometido com a mais fria reflexão. Eu sei que muitas vezes se procura evitar essa alternativa igualmente criminosa em se confiando ao acaso; mas então, isso não é voltar ao julgamento de Deus da Idade Média, sob outra forma? Pelo menos naquela época nós éramos menos culpados; a própria expressão julgamento de Deus indica uma fé — ingênua, é verdade, mas enfim, uma fé na justiça de Deus, que não podia deixar um inocente sucumbir, enquanto no duelo tudo se remete à força bruta, de tal sorte que muitas vezes é o ofendido quem sucumbe.
Ó estúpido amor-próprio, tola vaidade e louco orgulho, quando é que vocês serão substituídos pela caridade cristã, pelo amor ao próximo e pela humildade que Cristo ensinou e exemplificou? Só então desaparecerão esses preconceitos monstruosos que ainda governam os homens e as quais as leis são impotentes para reprimir, porque não basta interditar o mal e recomendar o bem: é preciso que o princípio do bem e o horror ao mal estejam no coração do homem.
UM ESPÍRITO PROTETOR (Bordeaux, 1861)
14. O que vão pensar de mim — vocês costumam dizer — se eu recusar a reparação que me é exigida ou se eu não a exigir de quem me ofendeu? Os loucos, como vocês, homens atrasados, vão então lhes censurar; mas aqueles que foram esclarecidos pela chama do progresso intelectual e moral dirão que vocês agiram conforme a verdadeira sabedoria. Reflitam um pouco: por uma palavra às vezes dita sem pensar ou totalmente inofensiva, vinda da parte de um dos seus irmãos, o orgulho de vocês fica magoado, então vocês lhe respondem de uma maneira aguda e daí surge uma provocação. Antes de chegar ao momento decisivo, vocês se perguntam se vocês estão agindo como cristãos? Que contas ficarão devendo à sociedade se a privarem de um de seus membros? Vocês pensam no remorso de ter tirado o marido de uma mulher, o filho de uma mãe ou o pai que sustentava os filhos? Certamente, aquele que faz a ofensa fica devendo uma reparação; porém, não seria mais honroso para ele fazer essa reparação espontaneamente, reconhecendo seus erros, do que expor a vida daquele que tem o direito de se queixar? Quanto ao ofendido, eu concordo que algumas vezes ele pode se sentir gravemente atingido, seja na sua pessoa, seja em relação àqueles que lhe são mais íntimos; não é somente o amor-próprio que está em jogo: o coração fica magoado e ele sofre; porém além de ser estúpido arriscar a vida contra um miserável capaz de uma infâmia, ocorre que, o ofensor já estando morto, será que a afronta — seja ela qual for — deixa de existir? O sangue derramado não dá mais destaque a um fato que, se for falso, cairia por si mesmo, e que, se for verdadeiro, deve ficar escondido no silêncio? Logo, não restará mais nada senão a satisfação da vingança saciada. Ah! Triste satisfação que frequentemente deixa ardentes remorsos, já desde esta vida. E se é o ofendido que sucumbe, onde fica a reparação?
Quando a caridade for a regra de conduta dos homens, eles adequarão seus atos e suas palavras a esta máxima: “Não façam aos outros o que vocês não gostariam que lhes fizessem.” Então, desaparecerão todas as causas de dissensões, e com elas os pretextos para os duelos e as guerras, que são os duelos de um povo para povo.
FRANCISCO XAVIER (Bordeaux, 1861)
15. O homem do mundo, o homem feliz, que por uma palavra ofensiva, uma coisa leve, arrisca a vida que ele recebeu de Deus, arrisca a vida de seu semelhante e que só pertence a Deus, esse é cem vezes mais culpado do que o miserável que, dominado pela cupidez — ou, às vezes, pela necessidade — invade uma casa para roubar aquilo que ele cobiça ou para matar quem se opõe aos seu plano. Este último é quase sempre um homem sem educação, tendo apenas noções imperfeitas do bem e do mal, ao passo que o duelista não raro pertence à classe mais esclarecida; um mata brutalmente, enquanto o outro mata com método e polidez, o que faz com que a sociedade o desculpe. Eu acrescento ainda que o duelista é infinitamente mais culpado do que o infeliz que, cedendo a um sentimento de vingança, mata num momento de exasperação. O duelista não tem como escusa o arrebatamento da paixão, porque entre o insulto e a reparação ele sempre tem de tempo para refletir; ele age, pois, friamente e com desígnio premeditado; tudo é calculado e estudado para matar com mais segurança o seu adversário. É verdade que ele também expõe a vida, e é isso o que justifica o duelo aos olhos do mundo, porque as pessoas veem nele um ato de coragem e de desapego à própria vida; mas haveria verdadeira coragem quando a pessoa está segura de si? O duelo — este resquício dos tempos de barbárie em que o direito do mais forte constituía a lei — há de desaparecer a partir de uma melhor apreciação do verdadeiro ponto de honra, e à medida que o homem tiver uma fé mais viva na vida futura.
AGOSTINHO (Bordeaux, 1861)
16. Observação – Os duelos se tornam cada vez mais raros, e se ainda vemos de tempos em tempos alguns exemplos dolorosos deles, seu número não se compara com os de antigamente. Outrora, um homem não saía de casa sem prever um encontro; assim, ele sempre tomava as devidas precauções. Um sinal característico dos costumes do tempo e dos povos consiste no uso habitual do porte de armas — visíveis ou ocultas, ofensivas ou defensivas; a abolição desse uso demonstra o abrandamento dos costumes, e é curioso acompanhar a sua gradação, desde a época em que os cavaleiros só cavalgavam protegidos por armaduras e munidos de lança, até a época do porte de uma simples espada, que se transformou mais em um enfeite e um acessório do brasão do que uma arma agressiva. Outro sinal da modificação dos costumes é que antes os combates individuais aconteciam em plena rua, diante da multidão que se afastava para deixar livre o campo, enquanto hoje eles se ocultam. Atualmente, a morte de um homem é um acontecimento que nos comove; no passado, ninguém prestava atenção a isso. O Espiritismo superará esses últimos vestígios de barbárie ao incutir nos homens o espírito de caridade e de fraternidade.
